sábado, 30 de junho de 2007

Um dia qualquer...

São seis da manhã. O relógio desperta acordando Paulo que, mesmo antes de acordar, no reflexo envia seu braço direito ainda sem muito controle para procurar o mecanismo que fará aquele pequeno demônio metálico parar de gritar, deixando-o dormir por mais cinco minutos e, após algumas tateadas ele consegue pressionar o botão. Ah se não fosse pela necessidade diária de usá-lo. Esse seria o fim do pequeno e estridente relógio. Ele acorda, escova os dentes, mastiga alguma coisa na cozinha e ainda terminando de se vestir, sai de casa atrasado, só pra variar. Culpa dos cinco minutos de sono a mais que ele se concede.
Paulo tem um problema e sabe disso. Ele simplesmente não consegue dormir bem à noite. Ele até chega em casa com sono, mas quando se deita, desperta. Isso traz como conseqüências, além da moleza que ele sente na parte da manhã, uma enorme fonte de raiva todos os dias. Ele odeia acordar cedo. É mais forte que ele.
Quando sai de manhã, por onde ele passa as plantas murcham, os passarinhos nos galhos de arvores próximas morrem e nada mais nasce onde ele pisa. Ele não toma leite, pois o liquido azeda em sua boca e o gosto permanece por boa parte do dia. Ele não consegue, ou talvez não queira falar, até que passe essa raiva. O que demora para acontecer.
No trânsito ele mantém a cara fechada e, apesar de não ter pressa nenhuma para chegar ao seu trabalho, fica com vontade de passar por cima dos carros mais lentos e dos motoristas menos habilidosos.
Ao chegar à empresa, ele bate o cartão como em um ritual diário e se dirige imediatamente para a copa. A xícara com o nome dele (uma das maiores) está lavada e virada de cabeça para baixo na travessa. O sistema de xícaras foi implantado por algum gerente com a cabeça voltada para a economia e ecologia, deixando assim a empresa de utilizar os copinhos de plástico, que ficariam apodrecendo por décadas em algum lixão, depois dos poucos segundos de utilização. Seja como for, ele aprova a idéia. A natureza que se foda, mas a xícara é maior e cabe mais café. E ele não corre o risco de queimar os dedos.
Paulo enche a pequena vasilha com abas de café forte e quente e, o cheiro maravilhoso do liquido sagrado invade suas narinas, trazendo um pouco de conforto a uma manhã que promete ser irritante como todas as outras. Agora tudo o que ele tem que fazer é seguir até a sua mesa, sentar a sua bunda, que vem aumentando a cada ano, na cadeira, ligar o computador e passar alguns minutos agradáveis tomando o seu café quente.
Ele cruza com algumas pessoas no caminho e cumprimenta a todos com um cordial, mas seco e treinado “bom dia”. Os anos naquela empresa tinham de servir para alguma coisa, e ele considerava o fato de dizer "bom dia" numa manhã daquelas algo bom, só possível com muito treino. Ele sabe que não deve sorrir. Não naquele horário. Ele ainda se lembra da última vez que tentou forçar um sorriso logo de manhã. A dor tremenda que ele sentiu quando os músculos desavisados foram contraídos, levando-o praticamente a uma câimbra facial. Não. Ele não faria isso de novo sem pelo menos dez minutos de alongamento, dos músculos das bochechas.
Perdido em pensamentos, ele avista uma figura entrando no final do corredor e sabe que vai ter que cruzar com ele antes de chegar a sua baia. Não tivesse nesse momento carregando uma xícara do precioso liquido preto, que demorava muito pouco para acabar, e do qual só haveria uma garrafa térmica cheia novamente após o almoço, ele se jogaria com uma cambalhota, atrás de uma mesa qualquer e prendendo a respiração torceria pra que o companheiro aludido não o tivesse visto. Mas agora era tarde pra qualquer decisão desse tipo. Marcos já tinha lhe visto e um sorriso largo em seu rosto já mostrara isso. Marcos, o chato. E não um chato qualquer. Um do tipo pegajoso e carente. Que pode te alugar por muito tempo. A verdade seja dita, alguns cretinos na empresa até gostavam dele, sempre prestativo, mas não Paulo. E ele tinha sem nenhuma explicação uma atração por Paulo. Gostava de falar com ele. O que piorava muito aquela situação.
- Bom dia Paulo.- Ah, ele gostava de se mostrar feliz em vê-lo.- Tudo bem com você?
- Bom dia. Uhum. Tudo bem?
Ele percebeu na hora. Um momento de distração e pronto. Em menos de um segundo ele se condenou e pôs tudo a perder. Como uma pessoa treinada como ele podia fazer uma coisa dessas. Uma pergunta tão inocente e ele sabia o que isso desencadearia.
- Tudo bem. Pelo menos comigo. Mas a minha tia, lembra a que eu tinha falado ontem? Ela não melhorou ainda. Está em casa e a carne esponjosa ao redor da unha do pé continua criando pus. A dor deve ser terrível e disseram que exala um cheiro terrível. E ela ainda esta preocupada com o problema de acne do meu primo o Mauricio, que não melhora e...
Paulo olha para o café e tenta se mostrar desinteressado pelo assunto. Mas Marcos continua seguindo firme a narrativa dos fatos de sua família por parte de mãe, que mora no interior. A conversa continua por dolorosos minutos e Paulo se pega pedindo a Deus que faça parar com aquilo. Precisava de todo o seu autocontrole para não fazer uma besteira e jogar o café quente na cara do seu amigo. Não. Só haveria café de novo depois do almoço. Mesmo que ele corresse de novo para a copa, sabia que não encontraria mais nada por ali. E Marcos continuava, determinado a locução.
- ... eles até pagaram uma limpeza de pele em um consultório caro pra ele mas nada parece resolver o problema. Que coisa não? – Sem esperar resposta ele continua. – E ontem? Ontem quando sai daqui o pneu de meu carro estava murcho de novo. Não sei o que aconteceu, o borracheiro disse que não havia furos e que isso é pouco comum e...
E continua, por mais alguns intermináveis minutos. Paulo já está, quase implorando a Deus que o faça parar, seja lá como for. Uma dor de dente repentina ou um ataque fulminante de hemorróidas, qualquer coisa. Mas a boca dele não pára de se mexer, nem de emitir sons. Continua por mais alguns minutos e quando Paulo já estava pra cometer algum ato desesperado, alguém em alguma sala chama Marcos.
- Bom, depois eu passo na sua mesa pra continuarmos, ta? – Marcos diz a Paulo.
Ele emite algum ruído e segue para a sua mesa. Senta na cadeira, liga o computador e olha para a xícara. Nenhuma fumaça. Nada. O café esfriou. A vontade de Paulo era a de jogar a cabeça para trás e soltar um grito de ódio, caminhar até o lugar onde estaria Marcos e sacando uma arma descarregar nele. Mas ele não tem uma arma. Então só fecha os olhos, abaixa a cabeça apoiando-a nas duas mãos em cima da mesa e espera passar a raiva.
O dia segue, ele trabalha um pouco, pára pro almoço, pega um palito de dente e guarda-o no bolso, assiste o noticiário de esportes, volta para a mesa, toma finalmente um café quente, trabalha mais um pouco e fica tentando apressar o horário para ir embora, como se hipnotizar o relógio pregado na parede branca fosse resolver alguma coisa. Impressionante como aquele ponteiro grande que corria tão rapidamente na hora do almoço, ficava lento à tarde e principalmente naquele determinado horário. Talvez a empresa tivesse encomendado um relógio especial, essa era uma teoria. Chega enfim a hora de ir para casa. Ele desliga seu computador, se levanta da cadeira, desce as escadas, bate o cartão e ao atravessar o estacionamento ele pára, dá uma olhada em volta, vai até o carro de seu amigo Marcos, se ajoelha diante do pneu traseiro do lado do passageiro, retira do bolso o palito guardado na hora do almoço, desatarraxa a tampinha do bico e encaixa o palito, que empurra a válvula para baixo, liberando o ar aprisionado e fedido que estava dentro do pneu. Espera até o ultimo suspiro. Retira o palito e gira novamente sem pressa a tampa do bico. Levanta-se, olha para os lados de novo. Ótimo. Ninguém viu. Continua, então, caminhando em direção a seu carro. Mas alguma coisa mudou em sua fisionomia. Sim. Um sorriso brotou em seu rosto. Ele agora esta feliz.
Ah, que maravilha, ele pensa, como os dias que começam tão ruins podem de repente se tornar tão alegres.
A vida não é realmente uma benção?

Valeu Hoogle - ex-aluno, amigo e editor ;)
Valeu Olívia pela dica ;)

2 comentários:

Dejeve Cetier disse...

Viva nossa moderna sociedade hipócrita de cada dia! VIVAAAA!

Gwen disse...

Ótima a sacada do palito :)
Segundo o Garfield, "bom" e "dia" são termos incompatíveis.

Bjocas!