Tarde de terça-feira, estamos próximos ao final do ano letivo de 2001. A semana de provas passou e estamos chegando nas avaliações de recuperação. Todos os alunos estão presentes e ansiosos pela divulgação das notas, que será feita por Miriam, a professora de português. Um dos alunos é um adolescente de 17 anos, chamado Ricardo, que está fazendo pela segunda vez o primeiro ano do ensino médio. Ricardo já teve diversos problemas de comportamento em outras escolas e nessa não foi diferente. Três colegas mais novos espancados, diversas advertências e duas reuniões marcadas com os pais. O pai, advogado sempre dizia que o filho seria punido em casa e que, portanto, a escola não precisava se preocupar com isso. E como as brigas foram sempre a mais de trezentos metros da escola, não seria afinal, da conta do Diretor. Os meninos que se acertem. Muitas discussões inúteis com os pais que não viam que o filho realmente estava desajustado. Não só mentalmente, mas socialmente. E ainda tinha um problema grave de concentração. Não conseguia passar do “Razoável” nas matérias e não suportava que outros colegas de classe fossem muito melhores que ele. O motivo das brigas tinha, invariavelmente, sido esse. Contara aos pais que batera em alunos “CDF´s” que ficavam perturbando-o durante a aula. Mentiras fáceis para alvos fáceis. Impressionante, ele acha como pessoas tão estudadas, podiam acreditar tão facilmente, em tudo que lhes era contado. Assim eram os seus pais. Advogados, sempre preocupados demais com os clientes e achando que o filho de 17 anos já era suficientemente maduro para não mentir.
A professora começa, então, a divulgar as notas e segue promovendo a grande maioria dos alunos. Poucos ficam para a recuperação, entre eles Ricardo. Ao saber da nota, ele sente uma sensação de raiva crescendo dentro dele e sente o seu rosto quente. É assim desde que ele era pequeno e sempre que não conseguia algo que queria a sensação era a mesma. Como se roubassem algo dele. Não importa que ele não estude o suficiente ou que não fez todos os trabalhos. Alguns outros alunos também não foram tão bem e estão com notas melhores. E a professora ainda falou a nota olhando pra ele. Isso foi ou não foi, afinal, uma provocação? Ela não deveria ter feito isso. Ela deveria ter mais consideração pelas pessoas.
Alguns alunos vão até a carteira falar com a professora, mas ele não. Ele permanece quieto, de braços cruzados, sentado em sua carteira, esperando a raiva ir embora. Mas ela não vai. Ela só aumenta. Ainda mais quando a professora, naquela sua pose, tão cheia de si, levanta-se e começa a escrever na lousa que matéria iria ser cobrada na prova. Toda a matéria do ano. Ela enlouqueceu? Toda a matéria do ano? Ele não se contém e pergunta se ela não achava que era muita coisa. A professora se vira para ele e com ar de superioridade faz uma pausa e diz: “O senhor deveria ter feito todos os meus trabalhos em sala de aula Ricardo, ao invés de perturbara mim e a seus colegas.”. Ela falou dessa forma com ele na frente de toda classe. Isso não se faz. Deveria tê-lo chamado em um canto e dito, se ela realmente achava aquilo.
A aula acaba e Ricardo sai da sala puto da vida, empurrando um colega que estava em sua frente na porta. A professora ao ver a cena, chama por Ricardo e ainda briga com ele na frente de todos os colegas. Ele se controla pra não bater na professora, vira as costas e continua. Ouve ainda a professora chamar por ele, mas a ignora. Se vier outra advertência, que se dane.
Ele vai para casa, tenta assistir o jornal e a novela, mas não consegue se concentrar. Quando o relógio da parede aponta 20h45min ele tem uma idéia. Vai até o quarto, veste uma roupa preta, que costuma usar em baladas, abre a gaveta do armário, pega o soco inglês e guarda-o no bolso da calça. Pega a carteira, as chaves de casa e no caminho da porta grita para seus pais:
- Vou sair com o Gustavo. Volto antes das duas.
- Precisa de dinheiro? – Responde o pai, deitado no sofá da sala de TV.
- Não. – Fecha a porta e sai.
Toma o ônibus, que ele pega todos os dias da semana, antes do almoço e se dirige para a escola. Aproveita que o porteiro não está em sua posição e passa pela portaria da escola sem ser visto. Vai até o estacionamento e espera em meio a sombras até a saída das aulas por volta das 23h00min.
Dentro da escola o sinal bate. A professora de Português, Miriam, se atrasa um pouco para descer, pois está atendendo alunos do período noturno que ficaram para recuperação em sua matéria. Outros professores passam por ela na entrada da sala dos professores a caminho de casa. Após atender ao ultimo dos alunos ela entra na sala, e vê que é a antepenúltima pessoa a deixar o prédio. Apenas dois professores estão discutindo, ainda em relação há uma mudança de grade da qual discordam e, todos viram, discordaram a semana toda. Ela passa por eles.
- Rapazes. Ainda não entraram em um acordo? – Mas percebe que eles estão realmente bravos e complementa – Vamos pra casa. Amanhã vocês terminam.
- Daqui a pouco nós vamos Miriam. Boa noite. – responde o mais alto, Eliseu.
- Boa noite pra vocês.
Eles parecem não tomar muito conhecimento disso. A professora assina o livro de presença e caminha em direção ao estacionamento. Olha dentro da bolsa e verifica se as chaves de seu carro estão lá dentro. Chegando ao carro ela ainda esta com a cabeça baixa, quando quase na porta do carro é surpreendida por um vulto, que estava a sua espera.
- Olá professora.
- Ricardo? – Ela reprime um grito. Olha em volta e não vê ninguém. O porteiro deve ter saído, pois esta fora de vista. – O que você esta fazendo aqui?
- Eu quero conversar com a senhora a respeito das minhas notas.
- Conversamos amanhã. – Ela tenta desviar de Ricardo e colocar a chave no trinco para abrir seu carro. Ricardo a segura com uma mão e a empurra para longe. – O que é isso Ricardo? Ficou louco.
- Eu só quero conversar professora. Na boa.
- Amanhã conversamos. Afaste-se ou eu grito.
Quando Miriam se prepara para gritar, Ricardo fecha o punho e acerta um soco embaixo das costelas de Miriam, que imediatamente deixa o ar dos pulmões escaparem em um espasmo de dor. Olhando para ele confusa e assustada.
- A senhora vai me ouvir de qualquer jeito. – Ele diz isso apertando os ombros da professora, que ainda não conseguiu recuperar a respiração.
A mulher tenta se livrar de Ricardo que percebe que pode ter ido longe demais com essa história. Mas agora é tarde para voltar atrás. Seus pais que lidem com isso depois. Ele tenta a fazer ficar parada e vê que no estado em que se encontra Miriam, ele não conseguirá fazê-la ouvir. Não desse jeito. Eis que toma a decisão errada.
Os dois professores que ficaram pra trás na sala, se chamam Eliseu e Victor. Eliseu é professor de biologia e Victor de história e são amigos desde sempre. Na verdade não lembram há quanto tempo são amigos, mas na ultima semana uma discussão vem tomando o tempo dos dois a respeito da grade curricular do curso e eles percebem que é muito tarde para estar na escola. Decidem continuar a discussão no bar mais próximo e dessa vez regada a cerveja. Quem vê os dois a distancia sempre pensa que estão brigando quando discutem, mas isso esta longe da verdade. Eles só não conseguem controlar o volume e os ânimos.
Pegam o material, assinam o livro e saem do prédio, a tempo de ver uma cena que congela o sangue dos dois. Uma pessoa esta segurando Miriam com uma das mãos e com a outra acerta-lhe o rosto, com tamanha violência que a professora cai para trás em direção ao carro e bate a cabeça de mal jeito na lataria do carro. O barulho é alto e ela cai com o pescoço mole em direção ao chão.
Victor larga seu material no chão e corre em direção ao vulto que agora ele percebe ser um dos alunos do período vespertino. Tenta se aproximar pelas costas para pegar o cara desprevenido, mas a primeira reação de Eliseu é gritar para Ricardo. Victor nem chega a ouvir direito o que Eliseu grita, mas vê que Ricardo se voltou pra ele. Antes de conseguir atingir-lhe um golpe, Victor recebe uma pancada em seu rosto e cai de mau jeito em direção ao chão. Todo o lado direito de seu rosto esta quente e ele não consegue mais pensar.
Eliseu, mais alto que Victor, aproximadamente do tamanho de Ricardo, com seus 1,90m, pula pra cima dele tentando agarrá-lo. Consegue passar os dois braços prendendo os do aluno, e ambos ficam se debatendo. Victor tenta desesperadamente retomar a consciência e se levantar, mas a sua primeira tentativa falha e ele cambaleia em direção a um tubo de ferro de mais ou menos um metro de altura, encaixado no chão do estacionamento, que demarca o inicio da vagas, acertando o seu ombro esquerdo. Balança a cabeça, mas algo parece repuxar toda a pele do lado direito de seu rosto. Seus testículos se contraem e sua cabeça gira.
Eliseu, por sua vez, foi bem sucedido ao agarrar Ricardo, mas ele consegue após pouco tempo se livrar do abraço, quando seus braços bem treinados pelo Jiu-Jitsu, abrem caminho pelos cansados do professor de biologia. Ao ver que não será possível mantê-lo preso Eliseu aproveita que seus braços estão livres e aplica um soco que pega no peito de Ricardo, e um outro que passa de raspão pelo lado esquerdo de seu rosto. Antes do terceiro golpe, o punho fechado do aluno vai de encontro a sua garganta, deixando-o sem defesa para o golpe que vem em seguida e que acerta seu queixo. Eliseu sente o seu peso sumir e, olha para cima enquanto vai de encontro ao chão, vendo as luminárias fracas do estacionamento aberto, rodarem em cima de sua cabeça. O impacto é forte e as imagens somem de sua visão. Tudo fica escuro.
Ricardo passa a mão no rosto e olhando para Eliseu, com muita raiva, enfia a mão direita dentro do bolso. Tira o soco inglês e com a mão para cima ajeita o encaixe. Ele olha para o professor caído a sua frente e decide que vai bater nele até desfigurá-lo. Quando ouve o barulho vindo de trás, é tarde demais. Um barulho que apenas os tubos quando movidos muito rápido, podem fazer. “Vuuu” e a parte de trás de seu joelho direito recebe a pancada. Ele cai imediatamente sem ter como se levantar, pois sabe que não há mais o que o sustente em pé. Aquela parte de seu corpo foi destruída.
Ajoelhado com a dor começando a tomar conta de seu cérebro ele olha para o lado e vê seu algoz, em pé meio cambaleante, com um tubo de ferro na mão, e um olho praticamente fechado pelo inchaço, causado por uma pancada que ele mesmo desferiu.
- Você me paga. – Diz olhando com raiva para o professor de história.
Victor, com o tubo nas duas mãos, cospe sangue para o lado e olha com o único olho que ainda enxerga alguma coisa para o aluno caído.
- Não nessa vida, seu bosta.
O professor de história aperta o tubo com as duas mãos e acerta um golpe na cabeça do aluno, que emite um som nauseante como o de um melão acertando o asfalto. O rosto de Ricardo vira para o lado ao qual foi arremessado e os olhos parecem procurar alguma coisa, enquanto giram loucamente em suas órbitas. Fica assim por um ou dois segundos e então desaba, de bruços no chão. Suas pernas sofrem espasmos e balançam loucamente enquanto o resto do corpo parece imóvel. Sangue começa a sair pela sua boca e ouvidos.
Victor ainda sem entender exatamente o que aconteceu, larga a barra de ferro e vai de encontro a seus dois colegas que estão no chão. Eliseu ainda mostra alguma reação, mas Miriam está estática. Ele se aproxima da professora e percebe que ela esta viva. Um alívio invade o professor. Ela só esta desmaiada. Seu amigo esta tentando se levantar, e ele nem sequer tenta ajudá-lo, pois sabe que não seria de grande valia. Não em seu estado atual. Solta seu peso, contra a lataria do carro ao lado de Miriam e fica sentado, exausto, vendo o corpo do aluno começar a acalmar. Seus espasmos, pós mortem estão diminuindo.
Após trinta minutos sentados no chão, quando a professora, já acordara e passara os últimos dez, chorando, eles começam a discutir sobre o que deveriam fazer.
- Eu dei o golpe quando ele estava ajoelhado. Não serei perdoado por isso. Vou para a cadeia.
- Você pode alegar legitima defesa. Nós vimos o que aconteceu. – Dizia a professora ainda chorando.
- Não. Nós não vimos. Estávamos desacordados. E os pais dele (disse apontando para o corpo), virão pra cima do Victor. Acho que ele não vai conseguir se livrar dessa.
- Nós podemos mentir – Replicou a professora.
- Precisamos decidir o que faremos. Vamos fazer uma votação. – Sugeriu Victor.
E eles votaram.
Ganharam por dois votos a um.
Dois anos e pouco depois, vários colegas estão conversando na sala dos professores, comemorando o aniversario de uma colega, quando Izilda, a cozinheira, entra com uma torta de vegetais, com velas em cima. O clima de final de ano, tomou conta de todos e sem alunos para dar aulas, eles ficam cumprindo o horário, jogando conversa fora. Victor e Eliseu, discutem por alguma conversa que foi iniciada por outro professor, que diz alegremente:
- Melhor pararem, senhores. Lembram-se o que aconteceu da ultima vez, não lembram?
- Por favor, professor, não me lembre essas coisas. Eu fico envergonhado com a minha infantilidade. Não deveria ter chegado ao extremo. Foi a minha primeira e ultima briga. – Disse Victor fingindo estar envergonhado.
- E quem pagou o pato foi Miriam ao tentar apartar a briga entre vocês dois. Aprendeu uma valiosa lição não é Miriam? – Risadas na sala.
Miriam pareceu extremamente desconfortável com o comentário e só balançou cabeça. O outro professor, percebendo a mancada resolveu mudar de assunto.
- E essa torta Izilda? Esta gostosa, mesmo?
- Esta gostosa e é especial. Foi feita com legumes fresquinhos. Direto da horta, que fica nos fundos da escola. - Disse Izilda.
Eliseu, Victor e Miram, se olharam rápido.
Nenhum deles comeria a torta de vegetais.
Não com os vegetais colhidos dessa horta.
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7 comentários:
do caralho.
a descrição da briga foi muito realista, ótima... algumas coisas ficaram BEM subentendidas, mas é bom pra não ficar aquele tipo de texto que se lê, digere e acabou ;D
sobrou coisas pra pensar
pena q eu já sabia uns tecos do final u_û
o vitor e o eliseu me lembram certos alguens _HUM
EAHIEAHuiEAHUIEAHuea
boa!
Qualquer semelhança é mera coincidência.
Valeu!
hahahaha ...eu senti o trocadinho do nome RICARDO ...
Gostei muitooo, ficou muito bem escrito ...
bjos
Vc como sempre se superando a cada texto. Ficou muito bom Ivan.
Parabéns
Sua Fã Nº 1
Gleyciely Morais
Uau!
Macabro e excelente.
Podemos ponderar algumas coisas quando se trata do ímpeto das pessoas...
Eu comeria a torta...
R.Bauer
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